ORIGENS DA CUTELARIA ARTESANAL BRASILEIRA

Até a Revolução Industrial (deflagrada para o mundo a partir de 1760 na Inglaterra, então considerada nos círculos econômicos como "a oficina do mundo"), todas as lâminas existentes eram confeccionadas por artesãos quando muito reunidos em pequenos grupos, a maioria deles familiares.

Entretanto, mesmo antes disso, algumas cidades da Europa medieval como Sheffield (na Inglaterra), Solingen (na Alemanha), Thiers (na França) e Toledo (na Espanha) já haviam se tornado grandes centros cuteleiros por concentrarem artesãos isolados (ou em pequenas confrarias), os quais apenas nos anos iniciais do século 19 (e em Sheffield) passariam a prestar serviços de forma organizada para as primeiras indústrias do segmento.O mesmo sucedeu nas Américas. 

Na do Norte, o pioneiro em reunir artesãos sob uma égide realmente industrial foi o estadunidense John Russel em 1832 e na do Sul isto apenas ocorreria a partir de 1911, quando o italo-brasileiro Valentim Tramontina resolveu abrir sua ferraria na cidade de Carlos Barbosa (RS) e posteriormente fabricar facas.

Em nosso país, os primeiros registros de um artesão cuteleiro datam de 1532, quando o ferreiro português de nome Bartolomeu Carrasco, vindo com a expedição de Martim Afonso de Souza para São Vicente, no litoral de São Paulo, instala sua oficina nas margens do rio Jurubatuba, com a finalidade de produzir ferraduras, anzóis e facas. Infelizmente, não se sabe o que ocorreu com esse personagem e sua oficina.

A primeirissima criação da cutelaria artesanal brasileira foi uma adaptação e destinou-se especificamente aos Bandeirantes: tratou-se de um tipo, hoje raríssimo, de espada (particular ao nosso país), que aproveitava a estrutura de empunhadura das rapieiras européias e a ela adaptava uma lâmina mais larga, bastante similar a de um facão, ferramenta esta que era bem mais útil nas matas fechadas, tanto para o trabalho de limpeza do terreno quanto nos combates aproximados com os silvícolas. 

De certa forma, esta criação seria o embrião das primeiras facas de Sorocaba, ou "Sorocabanas", como também seriam conhecidas.É certo que, desde os primeiros fluxos migratórios, para cá acorreram muitos artesãos portugueses e entre eles ferreiros-cuteleiros e prateiros, profissionais indispensáveis à confecção de facas na concepção que delas se tinha na Europa dos séculos 17 e 18: lâminas forjadas no clássico formato das adagas mediterrâneas, empunhaduras constituidas de materiais diversos mas sempre com aplicações de prata e bainhas de couro, quando muito com bocal e ponteira no mesmo metal branco. 

O primeiro centro cuteleiro de maneira organizada do Brasil que se tem notícia foi a cidade de Pasmado, no Ceará (hoje Abreu e Lima), onde – segundo documentos de 1718 – eram tantos os artesãos a atuar no trabalho específico de forjar lâminas que "...ainda distante da Vila, já se ouvia o soar dos martelos nas bigornas...". 

As criações de Pasmado foram, em sua maioria, de facas utilitárias, algumas de maiores dimensões sendo também usadas para defesa.No inicio do século 18, com as expedições cientificas que aqui chegaram também vieram pintores que registraram em seus trabalhos tropeiros portanto longas "facas de ponta", definição oficial das primeiras facas de defesa genuinamente brasileiras e que eram as do tipo Sorocaba. 

Posteriormente, essa definição ficou restrita às facas produzidas nas regiões Norte e Nordeste do Brasil.
Faca Sorocaba (ou Sorocabana) com lâmina de 12 1/2 polegadas, empunhadura em talas de chifre bovino e bainha original de couro. A data aproximada de sua produção foi a década de 1890.

Inicialmente Salvador, na Bahia, e posteriormente o Rio de Janeiro, tornam-se sede dos governos coloniais e muitos cuteleiros de origem portuguesa radicam-se nessas cidades, ao lado de prateiros de destaque que vinham do Reino em busca de novas oportunidades na "Terra dos Papagaios". É certo que a junção desses dois profissionais em terras tupiniquins produziu criações muitíssimo requintadas, como as ricas facas do Sul da Bahia e de Minas Gerais, clássicas adagas mediterrâneas com bainhas e empunhaduras de prata. 

Estas variantes foram - de certa forma - os "elos perdidos" entre o clássico formato europeu e aquelas que seriam as hoje chamadas "adagas do Período Colonial brasileiro", cujas únicas diferenças em relação às suas congeneres do Velho Mundo está justamente no fato de usarem empunhadura e bainha totalmente em prata.

As constantes feiras de gado que se realizaram em Sorocaba, no interior paulista, após a abertura do Caminho de Viamão, no Rio Grande do Sul, ou "Caminho dos Tropeiros", como também era conhecido, fizeram com que lá – já a partir do final do século 18 - florescesse uma crescente atividade artesanal de artigos ligados à vida no campo, entre eles as famosas facas de Sorocaba, que dariam início a outros tipos tais como as "franqueiras" e as mineiras do tipo "Curvelana".

Em paralelo a isso, existia nos Pampas gaúchos, a clássica "faca de prata", inicialmente como trabalho de toscos cuteleiros que aproveitam espadas quebradas, molas de carroça, restos de serras, etc. para com eles forjar lâminas. 

Posteriormente, com a industrialização das cutelaria de Solingen e Thiers, essas criações foram equipadas com lâminas européias e a elas se agregou o trabalho de prateiros, movimento que originou-se em Buenos Aires, Argentina, e atingiu os Pampas de Uruguai e Brasil.

O início do século 19 trouxe ao Brasil uma verdadeira invasão de facas comerciais produzidas principalmente em Solingen, Alemanha, e alguns raros exemplares manufaturados em Sheffield, Inglaterra. Para a América do Sul também afluiram alguns cuteleiros e prateiros de origens germânica e francesa e muitos deles se radicam em Buenos Aires, Argentina, no interior de São Paulo, no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul, iniciando o ciclo das mais requintadas criações com bainhas e empunhaduras de prata nos dois países. 

É nesta época que surge no Rio Grande Sul, o "ciclo dourado" das facas gaúchas, principalmente com excepcionais trabalhos de prateiros da cidade de Pelotas e, no Interior do Estado de São Paulo, as mais sofisticadas facas de Sorocaba, muitos exemplares desse período sendo, erroneamente, confundidos e catalogados como sendo "franqueiras". 

Igualmente é por volta do inicio de 1800 que surgem as mais sofisticadas facas artesanais do Sul da Bahia e algumas mineiras. Esse panorama de uma cutelaria comercial importada concorrendo ferozmente com a artesanal brasileira permaneceria inalterado até o final do século 19.

O Brasil do início do século 20 assiste um outro grande fluxo migratório iniciado com o Ciclo do Café e novamente para cá afluem artesãos europeus. Alguns deles, como os italianos Domingos de Meo, Valentim Tramontina, Abramo Eberle, Alfonso Pascetta Cosmo (A.P. Cosmo) e o alemão Paul Zivi (Mundial), irão montar sólidas estruturas de produção e venda de cutelaria em nosso país.

Outros irão dedicar-se à montagem de pequenas cutelarias familiares tanto no interior paulista (principalmente nas cidades de Amparo e Descalvado) quanto por todo o Rio Grande do Sul e em toda a região Norte/Nordeste, como foi o caso da famosa família Caroca, de Campina Grande (PB). É importante notar que essas cutelarias, embora dotadas de maquinário, apresentavam grande carga de trabalho puramente artesanal em suas criações, desde o forjamento das lâminas, a colocação das empunhaduras e a confecção de bainhas.

Na década de 1930, justamente através de "filhos desgarradados" das pequenas cutelarias familiares do interior de São Paulo, é que se inicia o moderno ciclo de cuteleiros artesanais no Brasil. Alguns desses profissionais, almejando um futuro melhor, migram para a já grande capital do Estado, um consolidado pólo de indústrias e comércios dos mais diversos tipos, uma metrópole de famílias abastadas e, portanto, com clientela certa. 

Na cidade de São Paulo instalam pequenas oficinas e irão, primeiramente, dedicar-se a fornecer cutelaria totalmente artesanal (tosca em comparação com a de hoje) para as florescentes casas de armas da metrópole; posteriormente, alguns ganhariam clientela própria.Enquanto isso, o interior paulista produz incessantemente facas Sorocaba através das pequenas cutelarias familiares e em Minas Gerais também surgem artesãos de destaque, filhos da própria terra, com suas "facas curvelanas" (da cidade de Curvelo), pálidas imitações do que foram as clássicas e requintadas facas e adagas mineiras do Brasil colônia.

É especialmente importante notar que até cerca de 1930 a quase totalidade das facas artesanais brasileiras, mesmo as mais requintadas, não apresentava timbre do produtor.
Ainda no final da década de 1930, o imigrante japonês Yoshisuke Oura , descendente de uma antiga familia de "espadeiros", inicia a produção de "katanás", tornando-se o pioneiro nessa atividade em nosso país, na qual permanecerá sem concorrência durante 30 (trinta) anos, sendo posteriormente seguido por Kunio Oda e Tomizo Ishida.

No início dos anos de 1960, surge na cidade São Paulo o trabalho pioneiro daquele que é, até hoje, o expoente máximo da cutelaria artesanal brasileira, Roberto Gaeta, ou Bob’G, que é como assina suas criações. Poucos anos depois, em Belo Horizonte (MG), vem o emigrante húngaro Antal Bodolay fazer par com ele. 

Ao iniciar a década de 1980, Roberto Gaeta torna-se o primeiro cuteleiro sul-americano a produzir seu próprio aço Damasco, um "segredo" trazido a luz em tempos modernos pelo norte-americano Bill Moran em 1974. Também nos anos 80, surge em Birigui (SP) o cuteleiro Padilha, que atuaria apenas por 4 ou 5 anos, mas possuindo um excelente polimento e "designs" muito bons em suas criações.

Roberto, Antal e Padilha deram início a um processo nacional (muito similar ao que ocorreu no mesmo período nos EUA) de divulgação e valorização do melhor tipo de faca que existe para se usar realmente, a artesanal executada com técnica e qualidade. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

TRANSFORMAÇÕES DO FERRO FERRO ALFA α - GAMA γ - DELTA δ

LIMAS: TIPOS - CARACTERÍSTICAS E CLASSIFICAÇÃO

CLASSIFICAÇÃO ABNT DOS AÇOS INOX