WOOTZ E A SUPERPLASTICIDADE
O wootz, um aço de cadinho UHC, já era conhecido na Ásia há 2 milênios, o estudo sistemático dos aços UHC começou apenas na década de 1970, nos EUA, durante pesquisas sobre superplasticidade dos aços com alto teor de carbono lideradas por Oleg Sherby.
A superplasticidade é uma propriedade interessante e, ao mesmo tempo, surpreendente, uma vez que se caracteriza pela manifestação de grande dutilidade (numa certa faixa temperatura), em
aços que, devido ao seu alto teor de carbono, são normalmente associados à fragilidade.
Durante estas pesquisas sobre comportamento superplástico de aços UHC, verificou-se que eles apresentavam composição semelhante as das renomadas
espadas de Damasco medievais. Esta propriedade foi, um dos fatores que permitiu o forjamento destas armas antigas.
No começo dos anos 80, a equipe de Oleg D. Sherby e Jeffrey Wadsworth, da Universidade de Stanford, conseguiram desenvolver um método que, aparentemente,
conduz a microestruturas e padrão macroscópico muito similar ao genuíno aço de Damasco. O método e o mecanismo que levam à formação de tal microestrutura são
descritos a seguir:
Primeiro, o aço de cadinho é aquecido a 1100°C para homogeneizar o lingote,
distribuindo o carbono uniformemente na austenita. Em seguida, o lingote pode ser
submetido à deformação a quente.
O segundo passo é reaquecer e manter o lingote a 1100°C por 48 horas. Este segundo passo promove o crescimento do grão austenitico. Um lento resfriamento abaixo da curva Acm segue-se, a fim de permitir a formação de uma rede
continua de cementita proeutetóide nos contornos de grão.
No terceiro passo o material é reaquecido a uma faixa de temperatura entre 650°C e 750°C e deformado mecanicamente. Esta faixa de temperatura redissolve o carboneto eutetóide, mas mantém o proeutetóide como rede continua. Esta cementita forma, então, uma rede contínua que encerra os grãos austeníticos.
Esta rede de carboneto que produz o padrão de Damasco é extremamente dura e é responsável pela fragilidade do material, uma vez que permite que trincas produzidas nesta fase
frágil se propaguem ao longo da rede Este problema podia ser superado por um cuidadoso forjamento inicial ou mesmo por um tratamento prévio de descarburação superficial que tinha como propósito produzir um fino envelope dútil de ferro baixo carbono no lingote a ser forjado.
O trabalho mecânico quebra essas redes de Fe3C em pequenas partículas que assumem em aspecto esferóide e permanecem alinhados em bandas. Finalmente o material é submetido a resfriamento e, quando a temperatura é inferior à do patamar eutetóide, a austenita transforma-se em uma estrutura que é parcialmente perlítica e parcialmente esferoidizada.
Após o forjamento a quente,
mas abaixo da temperatura A1 a estrutura torna-se totalmente esferoidizada. A estrutura final é composta de bandas de cementita esferoidizada em uma matriz ferrítica.
Uma informação adicional é que a forja, nessa faixa de temperaturas,
é favorecida pelo fenômeno da superplasticidade, manifestado por aços com este teor de carbono.
O aço de Damasco apresenta propriedades mecânicas muito boas, entretanto, o padrão damasceno requer a presença de uma es-
trutura metalúrgica relativamente grosseira, com partículas de carboneto tão grandes e localizadas ao ponto de formar bandas macroscópicas.
Sherby observou que esta
estrutura, embora bela, dificilmente é a melhor do ponto de vista mecânico. Uma estrutura formada de partículas de cementita tão finas quanto possível, uniformemente
distribuídas dentro de grãos muito pequenos produziria melhores propriedades mecânicas.
É improvável que ferreiros antigos não conhecessem este produto levando em consideração sua vasta experiência prática.
Este fato deixou Sherby intrigado.
Poderiam os ferreiros islâmicos medievais ter escolhido priorizar o padrão visual em detrimento a um aço mais resistente? A resposta pode estar em um critério cultural.
Posteriormente, John D. Verhoeven, da Universidade de Iowa, após exaustivo estudo sobre a literatura existente, realizou uma série de experimentos em parceria com o ferreiro Pendray e, finalmente, também apresentou uma explicação do mecanismo de formação do padrão de damasco.
De acordo com Verhoeven, as faixas de partículas de cementita são produzidas em regiões
interdendríticas. Estas regiões, por apresentarem maior concentração de elementos tais como Vanádio, devido à segregação ocorrida durante a solidificação, seriam os locais preferenciais de nucleação das partículas de carboneto que constituem as faixas. A nucleação e crescimento de tais partículas ocorreria devido aos ciclos térmicos empregados durante o forjamento .
Ao debruçar-se sobre o tema do aço de Damasco, Verhoeven observou um interessante paralelo entre o padrão damasceno das espadas e um fenômeno comum em aços hipoeutetóides, conhecido como bandeamento.
O bandeamento é a formação alternada de regiões ferríticas e perlíticas que pode surgir em decorrência da microsegregação de certos elementos de liga nos espaços interdendríticos de aços hipoeutetóides. Durante o processo de solidificação do aço, a interface sólido/líquido avança no sentido do último.
Elementos de liga presentes tendem a ser rejeitados para a porção líquida remanescente, devido à maior solubilidade destes elementos no líquido do que no sólido. Assim, a proporção de líquido vai diminuindo durante a solidificação, enquanto sua concentração em tais elementos aumenta, concentrando-se nas
últimas regiões a solidificar,
os espaços interdendríticos.
Consideremos um caso típico de um aço com cerca de 1% Mn e baixo S. O Mn tem efeito estabilizador para a austenita, abaixando a posição da linha A3 do diagrama de fases Fe-C.
Durante o resfriamento, ao se
transpor a linha A3, as regiões centrais das dendritas, com menor teor de Mn serão as primeiras a sofrer transformação, produzindo ferrita, expulsando carbono para as
regiões interdendríticas que, por sua vez, formarão perlita em um momento posterior.
Assim, o material apresentaria faixas perlíticas e ferríticas alternadas, revelando a localização dos espaços interdendríticos e o centro das dendritas,
respectivamente.
Caso a liga apresente teores consideráveis de S, o mecanismo de bandeamento é diferente, e depende da formação de Mn/S nas regiões interdendríticas, a qual favorecerá a nucleação da ferrita.
Com o propósito de verificar sua hipótese, Verhoeven realizou uma sequência de experimentos. Em um primeiro momento, o pesquisador acreditou ser P o principal responsável pelo surgimento de cementita interdendrítica. Esta poderia formar-se durante a solidificação, mesmo com teores de carbono abaixo da solubilidade máxima deste na austenita à temperatura eutética. Isto poderia ocorrer devido à ação do P, que acima de certos teores pode promover condições de não equilíbrio durante o resfriamento
Posteriormente,novos experimentos revelaram que o padrão damasceno
também podia surgir a partir de lingotes com baixíssimos níveis de P, excluindo este elemento como o principal responsável pela produção dos padrões. Observou-se que,
austenitizando por tempos relativamente curtos, amostras que já apresentavam o padrão, eliminava-se totalmente as ondulações visíveis.
Entretanto, numa subsequente aplicação de ciclos térmicos de aquecimento entre 500°C e cerca de 80°C abaixo da linha Acm, o padrão damasceno retornava gradualmente, na medida em que os ciclos se repetiam. Estes experimentos foram cruciais para estabelecer que as partículas de cementita podiam ser formadas mesmo sem deformação
mecânica, o que constitui uma das principais diferenças com relação à hipótese lançada pela equipe de Sherby.
Um novo panorama surgiu quando o pesquisador e sua equipe passou a utilizar ferro Sorel como parte da carga. Diferente das outras fontes utilizadas nas experiências anteriores, esta matéria prima contém impurezas, tais como V e Cr. As experiências distinguiram claramente que as lâminas que, após todo o processo
termomecânico, acabaram exibindo o padrão, haviam sido produzidas com ferro Sorel.
Este fato levantou a suspeita de que, embora em quantidades muito
pequenas, esses elementos formadores de carboneto acabassem sendo os principais
responsáveis pela formação das bandas. Tal fato foi corroborado por nova sequencia de experiências nas quais adicionaram,separadamente, vários elementos, entre eles, os formadores de carboneto V, Cr e Ti, verificando seus efeitos.
Os estudos de Verhoeven mostram evidências de que a formação das faixas ocorre durante e, devido, à realização dos ciclos térmicos. A cada ciclo, as partículas de cementita, nucleadas nas regiões
interdendríticas, engrossam à custa das menores pelo mecanismo de Ostwald ripening. Além disso, devido à segregação de certos
elementos nas regiões interdendríticas, o crescimento e diminuição das partículas de
carboneto nestas regiões é retardado devido à diminuição da mobilidade da interface
austenita/cementita.
Assim, durante os ciclos térmicos, o aumento da temperatura promove a dissolução total das pequenas partículas de cementita, principalmente nas regiões dendríticas, pobres em elementos segregados, enquanto nas regiões interdendríticas, maior proporção de partículas sobreviverá.
O resfriamento subsequente permitirá o crescimento das partículas que não foram dissolvidas nas regiões segregadas, mas não a reconstituição das partículas que foram totalmente dissolvidas nas regiões dendríticas, uma vez que isso exigiria nova nu-
cleação, o que é energeticamente desfavorável. O resultado final será uma série de partículas de cementita agrupadas em faixas cuja distância corresponde ao espaçamento esperado entre as dendritas após a deformação imposta pelo forjamento.
A proposta de Verhoeven sobre a origem das faixas de partículas de cementita o fez formular uma hipótese que explicasse o aparente fim da produção da espada de Damasco, ainda em meados do século XIX. Segundo ele, a produção das lâminas pode ter cessado como consequência do esgotamento das jazidas de minério que continham as impurezas relacionadas à formação do padrão.
A principal diferença entre este método e o de Sherby, reside no fato da cementita alinhada visível na superfície da lâmina ser de origem diferente daquela obtida por Sherby. Segundo este, as carreiras de partículas de cementita tem origem
proeutetóide, formando-se nos contornos de grão, para Verhoeven,
os carbonetos se originam durante os ciclos térmicos, mas não são formados pela deformação mecânica do forjamento. Verhoeven argumenta que o espaçamento entre as bandas de partículas de carboneto obtidas pelo método de Sherby não são os mesmos observados em lâminas de aço de Damasco genuínas.
Baseado em longo estudo e na observação minuciosa de vários exemplares genuínos de espadas de Damasco, Verhoeven propõe algumas características próprias do aço de uma espada de Damasco.
1) A matriz é normalmente perlítica. Entretanto pode ainda ser martensítica (revenida), ou bainítica em função do tratamento térmico final ao qual a lâmina foi submeti-
da.
2) As partículas de cementita são arredondadas (e não facetadas ou angulares) e tem raio na faixa de 3 a 20 µm. A distância entre as bandas é maior que 30 e menor 100 µm.
3) As bandas de cementita constituem um corte transversal de regiões planares que concentram as partículas de cementita. Os planos possuem pouca interconexão
4) Não há diferenças significativas na distribuição, tamanho ou formato das partículas de cementita entre cortes transversais e longitudinais.
5) Sendo o número de partículas médio contidas na espessura de uma banda.
6) A parte oposta ou gume da lâmina possui frequentemente uma costura cujas superfícies apresentam-se descarburadas.
Um assunto que intrigou Sherby durante seus estudos sobre o aço de Damasco é o fato de os ferreiros
islâmicos medievais aparentemente terem preferido aço de Damasco com seus belos padrões desenhados pela sua microestrutura, a um aço de estrutura mais refinada, com
melhores propriedades mecânicas, mas sem os desenhos superficiais.
Não é fácil entender a razão que levaria os antigos a preferirem o aço de Damasco tradicional se não considerarmos fatores de ordem cultural e religiosa.
Há indícios de que o evidente padrão damasceno na superfície das lâminas não tenha sido apreciado no sul da Índia. Os hindus parecem ter revelado pouco interesse pelo aço com padrão superficial ondulado que é particularmente uma arte persa. Por outro lado, espadas com o famoso desenho eram muito estimadas no mundo islâmico medieval, razão pela qual foram sistematicamente produzidas nas regiões muçulmanas da Ásia Central, Oriente Médio e Pérsia,
principalmente pelos artesãos
persas que alçaram a prática, à categoria de arte.
Diferente do que ocorre na Índia, em terras muçulmanas, o aspecto superficial do aço de Damasco assume conotação religiosa. Os desenhos ondulados do padrão
damasceno são frequentemente comparados à água fluindo. Isso conduz naturalmente a uma associação dos desenhos das lâminas com as águas do Paraiso, além da vida.
Água, no islã, está associada à vida. Entretanto, água de uma lâmina possui outra conotação, beber a água de uma lâmina é morrer.
Em persa, a palavra ab significa água, mas também pode assumir a conotação de água da lâmina. Uma
série de poetas islâmicos persas e otomanos da Idade Média utilizavam essa ambigüidade natural da palavra ab para compor versos que se utilizavam dos dois sentidos,
da morte e da vida, que eram gravados nas espadas de Damasco. Um grande número de espadas possui inscrições com versos que fazem referencia às águas do Paraíso.
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